Esquecimento e Restos Humanos: O Caso do Vale da Gafaria

Abstract

In 2009, a preventive archaeological intervention initiated by the construction of a public car parking lot in the extramural area of the city of Lagos, known as Vale da Gafaria, uncovered the oldest disposal site for enslaved people in Europe. An unprecedented site in the world, which provided the unique opportunity to exhume, study and document the remains of 158 enslaved African people. All this context and its antiquity give it both a unique and exclusive character, as well as an invaluable scientific, historical and patrimonial value.Starting from the case study of this site of true exceptionality, unprecedented in the world, it is intended, on the one hand, to analyze the forms of patrimonialization and memorialization of places with significant scientific values, but which convey traumatic memories of one of the most difficult historical processes and violent of all world history, transatlantic Slavery. On another level, the main complexities raised by the management, treatment and exhibition of human remains in Western institutions are analyzed and investigated, as well as the main problems inherent in this type of “materials”, which make them, in multiple ways occasions, objects of political struggle. It is argued that when these human remains involve contentious memories, namely from the colonial past, they might be forgotten and often silenced.Through the contextualization of the case study, it was possible to present the factors that led to the silencing of this site, and how to frame this specific silence in the structural forgetfulness conveyed by the nationalist narrative that repeatedly celebrates the virtues of the former Portuguese colonial empire. At the same time, through the analysis of the conjuncture of the international problem regarding the treatment of human remains, all the specificities of human remains from Vale da Gafaria were pointed out, as well as how the Portuguese context was framed in this problem, where the absence of a legislative framework that regulates the management and treatment of these “materials”, as well as the national delay in mapping these “collections”, seriously hinder a more correct and more ethical management. Being extra-European human remains present in Portuguese institutions concrete testimonies of colonial violence, it is understood that they belie the virtues of the former empire transmitted in official discourses.

Em 2009, uma intervenção arqueológica de cariz preventivo iniciada pela construção de um parque de estacionamento público na zona extramuros da cidade de Lagos, conhecida como Vale da Gafaria, colocou a descoberto o local de descarte de pessoas escravizadas mais antigo da Europa. Um sítio sem precedentes no mundo, que proporcionou a oportunidade única de exumar, estudar e documentar os restos mortais de 158 pessoas africanas escravizadas. Todo este contexto e a sua antiguidade conferem-lhe tanto um caráter único e exclusivo, como um valor científico, histórico e patrimonial inestimável.Partindo do estudo de caso deste sítio de verdadeira excepcionalidade pretende-se, por um lado, analisar as formas de patrimonialização e memorialização de locais com significativos valores científicos, mas que veiculam memórias traumáticas de um dos processos históricos mais difíceis e violentos de toda a História mundial, a Escravatura transatlântica. Num outro plano, analisa-se e investiga-se as principais complexidades suscitadas pela gestão, tratamento e exposição de restos humanos em instituições Ocidentais, tal como se explora as principais problemáticas inerentes a este tipo de “materiais”, que os tornam, em múltiplas ocasiões, objetos de luta política. Argumenta-se que quando estes restos humanos envolvem memórias contenciosas, nomeadamente do passado colonial, estes tendem a ser alvo de esquecimento e frequentemente silenciados.Através da contextualização do estudo de caso, foi possível apresentar os fatores que conduziram ao silenciamento deste sítio, como enquadrar este silêncio específico nos esquecimentos estruturais veiculados pela narrativa nacionalista que repetidamente celebra as virtudes do antigo império colonial português. Ao mesmo tempo, através da análise da conjuntura do problema internacional referente ao tratamento de restos humanos, apontou-se todas as especificidades dos restos humanos do Vale da Gafaria, tal como se enquadrou o contexto português nesta problemática, onde a ausência de um quadro legislativo que regule a gestão e tratamento destes “materiais”, tal como o atraso nacional no mapeamento destas “coleções”, dificultam seriamente uma gestão mais correta e mais ética. Sendo os restos humanos extraeuropeus presentes em instituições portuguesas testemunhos concretos da violência colonial, entende-se que eles desmentem as virtudes do antigo império transmitidas nos discursos hegemónicos.