Pós-feminismo no "Reino de Deus": o poder feminino e as feminilidades num contexto de mediatização da religião.

Abstract

A presente tese coloca-se na esteira de estudos que interrogam a forma como a midiatização pode contribuir com a emergência de espaços comunicativos nos quais grupos de mulheres podem negociar os significados de suas identidades religiosas numa cultura secular e global. Compreendendo a midiatização como a articulação entre práticas sociais e o ambiente midiático em um determinado contexto histórico, social e político, a pesquisa toma transformações do campo religioso brasileiro relacionadas à sua midiatização como um elemento fundamental para seu objetivo geral de pensar as práticas comunicativas levadas a cabo por mulheres em posição de visibilidade e autoridade no ecossistema midiático do projeto-movimento Godllywood, da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Partindo de um ponto de vista epistemológico e metodológico dos Estudos Feministas, enquadra tais transformações numa temporalidade composta por outros fenômenos que, contemporâneos à midiatização, tem constituído a paisagem pós-feminista em contexto brasileiro: a intensificação da neoliberalização e hipervisibilização dos feminismos no discurso público, seguida pelo antifeminismo — fenômenos alimentados por um vasto repertório de ideias contraditórias sobre os feminismos relacionadas à ideologia neoliberal e conservadora. No coração desta proposta está a hipótese geral de que o ecossistema godllywoodiano se constitui como um «espaço intermédio» ambíguo e estratégico com potencial para transgredir e reforçar o status quo — isto é, um espaço no qual um grupo de mulheres atua como meios-mensagens, caracterizado pela união das dicotomias secular–religioso, público–privado, feminista–não feminista, e com sentido e função política em tal contexto ideológico. A ambiguidade no eixo transgressão–reforço reside, assim, na idealização e performance de um modelo de subjetividade feminina assente a discursos pós-feministas, acompanhadas pelo desempenho de tais grupos em funções e papéis de poder que nem sempre são expectáveis ao gênero feminino na IURD e pelo uso da autoajuda enquanto linguagem. O método de análise do discurso que propõe a busca de repertórios interpretativos é adotado e adaptado à presente pesquisa, de natureza qualitativa, com vistas a examinar um corpus composto por quatro contextos interpretativos no âmbito do ecossistema godllywoodiano. A análise possibilita a identificação de três repertórios interpretativos associados às dinâmicas de aconselhamento a partir das etapas de familiarização e codificação do corpus, os quais foram examinados com um foco particular nas tendências discursivas pós-feminista. A análise conjunta de tais repertórios evidencia as relações de tensão que permeiam a atuação dos referidos grupos de mulheres em torno das noções de poder feminino, subjetividade feminina e feminilidade, bem como a construção discursiva de uma gramática pós-feminista e antifeminista de cariz espiritual, que possibilita a existência do ecossistema como um espaço no qual as mulheres se desviam e reforçam alguns precedentes de gênero ao representar e disseminar a ideologia da IURD no discurso público. Essas evidências destacam, assim, a importância de Godllywood em tempos de avanço do neoconservadorismo, lançando luzes para pesquisas futuras sobre suas possíveis contribuições para o estudo do antifeminismo no Brasil, bem como para o desenvolvimento de novas pesquisas no âmbito dos estudos sobre midiatização, gênero e religião em tal contexto.

This thesis is placed in the wake of studies that have been questioning how mediatization can contribute to the emergence of communicative spaces in which groups of women can negotiate the meanings of their religious identities in a secular and global culture. Conceptualizing mediatization as an articulation between social practices and the media environment that takes place in a specific historical, social, and political context, the research takes the changes in the Brazilian religious field related to this phenomenon as a core element to ground the communicative practices of women in positions of authority and visibility in the mediatized ecosystem of the Godllywood Project Movement, a part of the Universal Church of the Kingdom of God (UCKG). From an epistemological and methodological Feminist Studies viewpoint, the study thus situates these changes in a «temporality» characterized by phenomena that, together with mediatization, constitute the postfeminist landscape in Brazil, namely: neoliberalization and the hypervisibility of feminism in public discourse, followed by the rise of antifeminism — phenomena that were nourished by a broad repertoire of contradictory ideas about feminism in the context of neoliberal and conservative ideologies. Central to this proposal is the general hypothesis that the Godllywood ecosystem represents an ambiguous and strategic «middle region» that has the potential to transgress and reinforce the status quo — i.e., a space in which women operate as both medium and message; that is characterized by the union of secular-religious, public-private, and feminist-non feminist dichotomies, and that has meaning and political function within the referred ideological context. The ambiguity of the transgression–reinforcement axis of the Godllywood ecosystem would thus lie in the idealization and performance of a model of female subjectivity based on postfeminist discourses, along with unexpected roles and positions of power occupied by those women in the UCKG, by using the self-help as a language. The discourse analysis method that proposes the search for interpretative repertoires is thus adopted and adapted to the present study aiming to examine a corpus consisting of four interpretative contexts within the Godllywood ecosystem. During the familiarization and coding phases of analysis, such analysis provides the identification of three interpretative repertoires associated with the advising dynamics which are scrutinized for their postfeminist tendencies. The analysis highlights the tensions that permeate women's performance around notions of female power, female subjectivity, and femininity, as well as the discursive conception of a postfeminist and antifeminist grammar of a spiritual nature from which women get deviate from and reinforce some gender precedents by representing and disseminating the ideology of IURD in public discourse. These results thus highlight the importance of Godllywood in times of advancing neoconservatism, shedding light on future research on its possible contributions to the understanding of antifeminism in Brazil and new paths of inquiry on the relationships between mediatization, gender and religion in that context.